sábado, 10 de novembro de 2012

CARACTERIZAÇÃO DA CIÊNCIA ACTUAL




CARACTERIZAÇÃO DA CIÊNCIA ATUAL

 

 
Entrevista concedida ao Jornal Expresso pelo físico Henvig Schopper (então diretor do CERN- acelerador gigantesco de partículas instalado na Suíça) e publicada em 16.01.1985.

 Expresso - O facto de a física ter vindo a desvendar sucessivamente os segredos da matéria faz com que muita gente pense que ela poderá fornecer às outras ciências as respostas que estas procuram. Acha que isso acontecerá? Acha que as outras ciências se verão obrigadas a "descer" ao nível da física das partículas?

Herwig Schopper - Mais do que estudar eletrões, fotões e protões, a física das partículas tenta responder à pergunta: "O que é a matéria?" . Como a matéria é o vetor, a base de todos os outros fenómenos, de certa forma a física está na base das outras coi­sas. Mas não gostaria de dizer que a física pode explicar todas as outras coisas.

Creio que existem três grandes questões: a primeira é "o que é a matéria?", a segunda, "o que é a vida?" e a terceira "o que é a consciência". E se a física pode res­ponder à primeira não suponho que ela possa explicar o que caracteriza a vida ou o pen­samento.

Exp. - Falou do pensamento, mas precisamente ai também existe uma tentativa para o reduzir à bioquímica e para reduzir esta à física. Pensa-se que, no futuro, se poderá "fazer química" aplicando lasers às moléculas. Acha que a física poderá vir a ser uma "ciência dominante", o novo pensamento integrador?

H.S. - Vejo isso de uma forma diferente. Imaginemos a realidade como um objeto muito complicado, a três dimensões. Para estudar esse objeto podemos iluminá-lo de diferentes direções, obtendo assim diferentes projeções desse objeto. As projeções que obtemos são sempre diferentes e por vezes parece-nos até que elas se contradizem, o que não é necessariamente verdade.

Exp. - Quais são essas projeções?

H.S. - Uma delas é a ciência, outra a arte, outra a religião, a moral, e ainda existem outras porque de facto há mais do que três dimensões. Mesmo dentro da ciência encon­tramos projeções um pouco diferentes, como a biologia, a física ou a psicologia. Todas estudam o mesmo objeto, que é a realidade, mas as projeções que obtemos podem ser completamente diferentes.

Relativamente à religião, inclusive, não é possível que a ciência entre em contradi­ção com ela porque, se os métodos científicos podemos investigar uma certa parte da realidade, com outros métodos, como a religião, a arte ou a estética, podemos investigar outros domínios.

Tudo se resume a isto: saber o que é verdadeiro, conhecer a verdade.

E aqui a ciência tem algumas limitações. Nós consideramos como verdadeiro ape­nas aquilo que se pode repetir, as experiências que são reprodutíveis, que se podem veri­ficar. Mas há muitas outras coisas que não se podem repetir, como história por exemplo. Não se pode repetir Napoleão.

No século passado pensou-se que se poderiam explicar todos os mistérios do mundo com recurso à ciência. Penso que isso não é verdade. A ciência está limitada pelo seu método e pelos seus instrumentos e não pode senão investigar uma parte da realidade.

Exp. - Mas é verdade que a ciência aceita hoje, como pontos de partida para a sua investigação, hipóteses que nada no adquirido científico poderia levar a postular. Aceitam-se como temas de estudo ideias recolhidas do imaginário e do mítico, da magia ou da ficção científica. Será que a ciência pretende no fundo integrar as diver­sas projeções de que falava?

H.S. - Creio que a ciência faz apenas progressos no sentido de cobrir uma parte mais importante da realidade. Afirma-se muitas vezes que "a ciência descobriu" isto ou aquilo e suponho que muita gente pensa que a ciência trabalha da seguinte forma: a natu­reza existe, é um dado, e nós vamos descobrindo parte dela, como se fossemos afastando uma cortina que cobre uma pintura. Não é tão simples como isso.

PeIo contrário, a ciência é um processo muito mais criativo do que simplesmente descobrir algo que já existe. A fase mais importante no progresso da ciência consiste em encontrar novos conceitos. Vou dar um exemplo histórico: um dos sucessos de Newton consistiu no conceito de fricção, que é uma abstração. A nossa experiência de todos os dias diz-nos que um objeto em movimento a que não é aplicada nenhuma força acaba por parar. Newton explicou que isso só acontecia porque havia uma força que atuava sobre esses objetos, a fricção, e que se a pudéssemos eliminar, o objeto continuaria a mover-se para sempre.

O progresso da ciência deve-se ao processo criativo, semelhante à arte. Formando novos conceitos creio que se pode alargar a parte da realidade que é acessível à ciência, mas não penso que estejamos a caminhar para a unificação da ciência, da filosofia, da religião e da arte.

Exp. - E esses novos conceitos representarão de facto uma melhor compreensão da realidade ou apenas a construção de uma nova realidade? Existem por exemplo físicos que se interrogam se aquilo que se deteta nos laboratórios de física das partículas são realmente partículas.

H.S. - Suponho que sempre que construímos uma nova descrição da realidade nos aproximamos dela, ainda que assimptoticamente. Se observamos realmente partículas ou não? Sim, pode ser uma questão muito interessante, mas o problema fundamental não é esse.

A questão fundamental é que até agora tentamos descrever a natureza em termos dos componentes últimos da matéria e das forças que agem entre eles. Passamos várias etapas: há 150 anos os químicos pensavam que eram os átomos; depois surgiu o núcleo e os eletrões, mais tarde vimos que dentro do núcleo havia protões e neutrões e hoje pen­samos que tudo são quarks, leptões e forças. Mas será que esta desintegração vai conti­nuar para sempre ou chegaremos a um limite? Penso que chegamos a um limite.

Os quarks são talvez conceitos matemáticos e talvez não tenham nada a ver com a realidade de uma partícula: nunca se encontrou nenhum quark "livre". Mas acontece que à medida que descemos na dimensão, notamos que as partículas se ligam mais umas às outras, cada vez com mais torça e que é necessária cada vez mais energia para as sepa­rar. Será então que podemos falar de partículas individuais? Penso que nessa altura a ideia de descrever a natureza com recurso a partículas, pequenos "tijolos" ligados entre si por pequenas molas, perde o seu sentido.

 Exp. - E o que vem a seguir?

H.S. - Está a haver grandes revoluções na física. Um dos conceitos que hoje surge com mais frequência é o de "simetria". Hoje estamos mais inclinados a aceitar que os princípios fundamentais da Natureza não assentam nas partículas, mas sim no conceito de simetrias de diversos tipos entre essas partículas, que é uma coisa muito abstrata. Parece pois que estamos a abandonar as ideias do Sr. Demócrito, que foi o primeiro a declarar que se deveria descrever a natureza em termos dos seus mais pequenos elemen­tos constituintes e estamos a aproximar-nos do Sr. Platão, que disse que a realidade última são as ideias.

Seria urna mudança radical, uma verdadeira revolução cuja importância ultrapassa­ria em muito a esfera da física.

É por isso que acredito que aquilo que fazemos aqui no CERN não é apenas física mas sim parte da cultura humana.
 
Exp.- E aí não estamos já em pleno terreno da filosofia? A física não está a ditar a filosofia?

H.S. - Não diria isso, mas acho que a física exerce de facto urna grande influência sobre a filosofia. Não a substitui mas fornece-lhe um forte "input".

Exp. - Concorda que os físicos e os cientistas em geral gostam de pensar que, no fundo, tudo é simples? A tentativa de reduzir todas as forças físicas - as forças forte e fraca, a eletromagnética e a gravitação - a uma única força parece-me um bom exem­plo disso. Porque razão há de haver uma única explicação e porque ela deve ser sim­ples? Porquê essa fé?

H.S. - É uma questão interessante. Acho que é urna atração não científica acredi­tar que tudo deva ser explicado em termos simples. É uma atitude filosófica e que pode estar errada. Mas é preciso constatar que até agora tem resultado.

Chamou-lhe fé mas acho que essa crença tem mais a ver com a estética do que com a religião. Ou terá a ver com a religião no seu sentido etimológico, algo de estilo: "Se tudo está ligado deve ser possível explicar tudo recorrendo a um número limitado de explicações" Acho que sim, que uma parte dos físicos e cientistas acredita nisto.

Exp. - Uma pergunta final a propósito do CERN: a física das partículas merece alguma contestação, nalguns meios, por se tratar de uma área de trabalho dispendiosa e que não tem como objetivos a resolução de problemas imediatos que se colocam hoje no mundo. Trata-se da velha questão da ciência fundamental "versus" investiga­ção aplicada. A própria Grã-Bretanha pôs a hipótese de abandonar o CERN devido a dificuldades financeiras. Quais são os seus argumentos de defesa desta investigação? O que é que o CERN faz?

H.S. - nós ternos vários objetivos aqui no CERN. Um deles é o fazer ciência de excelência. Estivemos a falar disso durante toda esta conversa: ciência é parte da cultura da humanidade. O nosso trabalho contribui para compreendermos melhor qual é a posi­ção do homem no universo.

Mas o CERN é também um pólo de excelência no desenvolvimento da tecnologia.

Para conceber e construir os aceleradores e os detetores, precisamos quase sempre de ultrapassar os limites tecnológicos do presente e isso tem trazido enormes benefícios à indústria - são as próprias empresas que o afirmam.

Mas ainda há outra coisa: é que a ciência fundamental de hoje é a tecnologia de manhã. Deixe-me ilustrar isto com um exemplo histórico, que por vezes dou aos políti­cos quando me fazem perguntas semelhantes: se um governo, há 150 anos, tivesse criado uma comissão para definir um programa de investigação e desenvolvimento para a ilu­minação, teria certamente desenvolvido melhores velas, excelentes candeeiros a petróleo, mas nunca se lembrariam da eletricidade, que era um campo que os meus colegas desse tempo já estavam a investigar.

Estou profundamente convencido de que o que fazemos hoje irá dar origem dentro de trinta ou quarenta anos a aplicações totalmente novas que ainda nem sequer imagina­mos, tal como aconteceu com a eletricidade.
 
 
 
 
                                                




 

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